terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Os Transtornos Alimentares*


O ser humano não é uma ilha, independente de tudo o que o cerca, e se fosse teríamos de dizer que o oceano seria a sociedade, na qual o homem vive imerso como um peixe no mar. Muitas são as culturas, raças e nações, e no entanto o homem é o mesmo em sentimentos, pensamentos e desejos, é uma grande variação sobre estes mesmos temas. Cada período da história, cada civilização e cultura tem sua própria maneira de conceber o mundo, o papel do homem nele e quais são as qualidades valorizadas, quais são os comportamentos virtuosos, e quais são os valores de bem e mal, certo e errado, feio e bonito. 

A diferença cultural pode ser exemplificada pela história da dona de casa búlgara, cujo marido convida um colega asiático para o jantar. Deixar de oferecer uma repetição é para ela uma grande falta de cortesia, e ela o faz, e o japonês aceita, até que ela tem de ir à cozinha preparar mais alimentos. Isto se repete até que o jovem japonês desmaia e põe fim a este sofrimento. Acontece que para um japonês recusar a oferta de seu anfitrião é uma grande ofensa, um desrespeito que ele detesta, tanto que prefere desmaiar à recusar a comida. Assim vemos que cada grupo social tem sua maneira de lidar com a comida, as regras sociais e hábitos alimentares estão impregnados de traços de sociabilidade, cortesia, aceitação e afeto.
Isto nos conduz diretamente até à primeira relação do ser humano, com sua primeira fonte de alimento, que é o seio. Seio este que é um órgão nutridor para o bebê, um símbolo de feminilidade para a mulher, e atração estética para os homens. Um órgão que tem significados distintos a partir da inscrição que ele toma na relação com o outro ou consigo mesmo. E é a partir da diferenciação do corpo da mãe evolui o ser humano, inicialmente gestado dentro do abdome da mulher. A diferenciação do self inicia-se nesta relação com o corpo da mãe, está inserida nestes primeiros contatos físicos mãe/bebê, e a maneira como o self vai ser formado tem a ver com esta relação. A relação afetiva mãe/ bebê necessária à sobrevivência está portanto apoiada em uma relação corporal e fluxo libidinal e por eles será configurada. Freud (1916) : “ O componente erótico que é satisfeito simultaneamente durante a sucção nutricional, torna-se independente com o ato da sucção sensual: abandona o objeto externo e o substitui por uma área do corpo do próprio bebê.” Ou seja, o alimento torna-se para o anoréxico/bulímico não apenas um elemento que dá prazer auto-erótico, mas é usado com funções “reguladoras” da relação com a mãe, tentativa de prescindir ou manipulá-la, passando a usar o corpo e o alimento neste sentido.

O alimento que por um lado pertence ao mundo exterior, por outro tem características muito pessoais, pois vai ser incorporado e constituirá o nosso corpo literalmente falando. É como se o leite fosse o primeiro objeto transacional, e este é um objeto líquido intermediário entre corpo da mãe, com o cheiro da mãe, e o corpo do bebê. A fantasia de estar comendo a mãe não é muito distante do que acontece na realidade... O alimento assim adquire um significado muito pessoal e carregado de características próprias da relação mãe/bebê e, no futuro, como esta pessoa vai relacionar-se consigo mesma e com os outros. E nestas relações desempenha o papel fundamental a alimentação, e à ela são anexados os cuidados corporais com o bebê, especialmente com a higiene e o contato com a pele da criança. São estas primeiras relações corporais - e notemos que são relacionadas com higiene e alimentação, com prazer e desconforto - que são a base das identificações que vão propiciar a formação de nosso aparelho psíquico.

Até aqui falamos de conceitos ligados à teoria da libido para entender a carga de afeto que está ligada ao alimento, porém não podemos nos esquecer das características oriundas da libido narcísica quando lidamos com os quadros dos transtornos alimentares. Não se lida apenas com significados afetivos dos alimentos em quadros de anorexia, bulimia ou obesidade. Lidamos muito mais com a imagem que estas pessoas tem de si mesmas, tanto de imagem física quanto mental. O conceito de beleza e do valor pessoal é algo que é variável de acordo com a época, raça e cultura. O ser humano aspira à perfeição e isto inclui uma perfeição física e psicológica. Daí a necessidade de adequar um modelo de corpo que corresponda a estas expectativas pessoais, pois o corpo é o agente fundamental da formação da consciência individual. 

No neolítico as estatuas femininas em geral retratam mulheres obesas, geralmente associadas à deusas da fertilidade, com grandes seios e quadris. Os nus de Renoir nos parecem gordos para os padrões atuais de beleza ocidental. Através da imagem estética busca-se uma identidade própria, e uma aceitação grupal, pois o conceito de beleza está ligado a um ideal de beleza de um grupo social. A imagem de si mesmo, a busca da harmonização da imagem si como é visto pelos outros, como sente o próprio corpo e como é a imagem objetiva de si, leva a pessoa à uma busca de integração pessoal, através da satisfação narcísica. Dependendo do grau de mentalização e introspeção, a pessoa poderá buscar isto dentro de si mesma (ideal do ego), ou no mundo externo (apoio social). 

A patologia símbolo de nossa época- os transtornos narcísicos- são exatamente uma tentativa de equacionar os problemas da formação do self e da identidade. Alguns recorrem então à cirurgia bariátrica ou à dieta; e outros à Psicanálise para encontrar uma integração e equilíbrio de si mesmo. Esta busca reflete o conflito entre corpo físico e mente, externo e interno, emocional versus racional, libido objetal e libido narcísica. Não devemos nos esquecer no entanto, que é a mente que forma uma imagem do corpo, e não que este corpo tem uma fisicidade objetiva concreta independente de qualquer representação mental.

A anorexia e bulimia, são exemplos que refletem a nossa cultura e seus valores, sendo praticamente inexistente em culturas que não valorizam a magreza. Em certas culturas ter uma mulher gorda é sinal de riqueza. A anoréxica geralmente é uma boa menina, que na adolescência mostra seus aspectos inafetivos e falta de autonomia, bem como não sentir seu corpo como seu, pois mantém uma fusão emocional com suas mães. A doença então é uma forma de autocura, e o controle de seu peso corporal é uma tentativa de lidar  com as dificuldades emocionais, como a dependência, a dificuldade de separação e passividade nas relações interpessoais através do controle do peso corporal. Poucas gramas fazem uma grande diferença, quando se trata da necessidade de adquirir ou não um sentimento de si mesma, e de sentir-se integra como pessoa. Mais uma vez o corpo é veiculo de regulagem de carências emocionais.

O comportamento do anorético reflete a necessidade de sentir-se uma pessoa especial e única, ganhando assim a possibilidade de ser amada, admirada pelas suas qualidades. Desenvolvem um falso self para agradar à mãe, ser uma criança perfeita, comportada, para assegurar-se de não perder o amor da mãe. A raiva e a agressividade reprimidas no entanto fazem com que o ressentimento se acumule, diminuindo a possibilidade de receber coisas boas das pessoas, que são rejeitadas. O tratamento é complexo exatamente pela necessidade de mudanças nas relações familiares que participaram do surgimento desta forma de constituir-se enquanto pessoa. Estritamente falando, parece que o paciente é o sujeito de relações afetivas mal resolvidas, especialmente da mãe. Assim sendo ele não consegue ser ele mesmo, há um pacto não escrito que os transtornos alimentares são a  solução que paciente e família encontraram de lidar com as dificuldades sexuais e agressivas, de crescimento e de separação.

Os episódios de bulimia são devidos ao deslocamento para a comida da raiva e da agressão que é inconscientemente dirigida para os pais. O relacionamento com eles é utilizado para receber uma punição e a comida é destruída canibalisticamente. Estas pessoas não conseguem regular seus relacionamento afetivos, assim como não conseguem regular a ingestão de comida, para a qual são deslocados seus problemas pessoais. Neste contexto, o vomito equivale a uma rejeição de internalização de algo bom, ou então ao medo de ser invadida por algo ruim, que precisa ser expulso. Uma voracidade intensa, com o desejo de engolir e tudo possuir, esta incorporação oral determina que estas coisas ou objetos bons que são desejados sejam incorporados com muita agressividade, o que os torna maus, ou então estragados pela própria violência da pessoa neles colocada, inclusive pela forma raivosa com que foram incorporados. Este ataque interno determina a necessidade de expulsá-lo pelo vomito ou pela não ingestão, atacando também os vínculos com as pessoas fornecedoras de alimento- a mãe. Não conseguir receber aumenta ainda mais a raiva e a inveja, e a penúria interna torna a frustração ainda mais desesperada- o que leva a mais agressão. 

A bulímica simbolicamente destrói as pessoas (os vínculos afetivos) através da comida, e a anoréxica tenta manter o controle sobre sua agressividade recusando-se a comer. A ingestão alimentar simboliza um modo de relacionamento onde se expulsa, recusa ou ingere-se desordenadamente os sentimentos; o desejo de estar fundido com o outro e as dificuldades de separação ou expulsão de sentimentos negativos são transformadas em desejo de ingerir ou recusar alimento(afeto, libido).

Assim a comida tem uma função de lidar com a raiva, com a frustração, e obter um prazer às avessas, é um modo de se comunicar com a família e a sociedade, de ser punida(bulimia) ou de punir(anorexia). A comida surge no lugar das preocupações emocionais e dos sentimentos, especialmente afetivo-sexuais, narcísicos  e agressivos, das dificuldades de separação da mãe à qual encontra-se fusionada em diferentes graus, com prejuízo  da imagem  de si mesma como pessoa.
A tarefa dos profissionais de saúde é entender a complexidade envolvida nestes comportamentos, que não podem ser reduzidos somente a um de seus ângulos, seja nutricional, psicológico, social ou médico. Os transtornos alimentares são complexos e de difícil tratamento, e soluções definitivas como a cirúrgica necessitam de cuidadosa avaliação psicológica, pois a grande redução de peso resultante pode alterar a imagem de si próprio, e ser sentida como um esvaziamento de si mesmo(self) e podendo levar a vivências  até de nível psicótico, pela possível perda da identidade precariamente obtida desta forma.

Tendo proposto as questões culturais dos distúrbios alimentares, eu gostaria  de situar o panorama social e cultural no qual se localizam os transtornos alimentares. Nenhum homem vive independente do seu mundo que o cerca, e em Psicanálise existe uma divisão sobre o papel do meio ambiente como uma causa de problemas ou não. Existem aqueles como Karen Horney, Winnicott e Kohut que atribuem um fator fundamental ao ambiente seja ele cultural ou seja representado pela mãe; enquanto que outros atribuem um papel muito menor, e dentre estas quero destacar a grande figura de Melanie Klein. Já Freud, com toda a sua genialidade, era eqüitativo, atribuindo a ambos os fatores igual importância, um complementando o outro, o que ele chamava de série complementar.

No seu livro “ Psicologia de grupo e analise do ego”, ressalta Freud que a inserção de uma pessoa em um grupo social dá-se por uma identificação primeiro com o líder, e depois pelos membros do grupo entre si. A palavra líder pode ser substituída por qualquer figura que a pessoa admire ou que sirva de modelo de identificação, e entre os adolescentes é comum que seja um artista ou cantor da moda ( é bem verdade que são todos substitutos das figuras parentais). Esta pessoa e o grupo assumem o papel de superego e ideal de ego do indivíduo no grupo, como descrito por Freud,  e assim a pessoa é dirigida em seus ideais e controlada em seus desejos desta forma, copiando comportamentos e formando hábitos. Um dos mais importantes é quanto aos hábitos alimentares, que tem tudo a ver com afeto e sentimento, especialmente com relação com a mãe. A relação com a comida é de uma tonalidade afetiva determinada pela dupla pais/filhos inseridos na cultura familiar. O cheiro e a apresentação dos alimentos, a reunião das pessoas à mesa, não são apenas para nutrir o corpo físico, mas nutrem as relações  amorosas nas famílias. A hora da refeição é uma hora de trocas afetivas entre as pessoas, e com a vida moderna isto está mudando, as pessoas não estão todas presentes, não comem juntas. A  super-alimentação e obesidade podem ser  investigadas como questões de pulsões orais e dificuldade de controlar pulsões agressivas, mas do ponto de vista de representação do self, trata-se da necessidade da criança estabelecer uma relação com alguém que lhe forneça alimento, por mais vaga que seja a forma que esta relação seja  reconhecida. No entanto, a criança necessita não apenas da comida, mas principalmente do suporte afetivo para edificar o seu self, e isto só se torna possível na  relação que se estabelece com quem a alimenta de amor.

No famoso artigo de Freud de 1914, “ Sobre o Narcisismo”, ele distingue duas principais partes do ego, primeiro as funções do ego, e em segundo, as representações do ego. Quanto às funções do ego, nossa sociedade tem dado um avanço tremendo, com muitos ganhos nos aspectos cognitivos, motores, com desenvolvimento de habilidades técnicas que não cessam de evoluir. Já no aspecto representacional do ego, não tem havido o mesmo progresso e desenvolvimento do self. Por representação do self, entenda-se a imagem coesa e integrada que uma pessoas desenvolve de si mesma no decorrer do tempo, é um sentimento de ser ela mesma, de identidade, e também como gênero, isto é, homem ou mulher. Deve-se incluir neste sentimento de si-mesmo a capacidade de manter relações afetivas com outros significativos- isto é, pais, irmãos, parentes, namorado/a, marido/mulher, amigos e colegas. Nota-se nestes pacientes uma insatisfação difusa e mal definida, uma sensação de vazio crônico, uma vaga depressão atípica, que Kernberg denominou de síndrome de difusão de identidade, que é uma das maiores características dos distúrbios narcísicos  de personalidade. A difusão de identidade manifesta-se por percepções contraditórias de si mesmo,  e uma visão empobrecida dos outros, que ocasiona relações caóticas e superficiais com as pessoas. 

Estes distúbios, juntamente com os borderlines, são para o analista contemporâneo aquilo que para Freud era a histeria- a grande maioria dos casos e um enigma a ser decifrado, um desafio. Ao mesmo tempo, tem sido umas das grandes fontes do avanço teórico e clínico na psicanálise. Borderline é uma classificação que refere-se a pacientes com uma ansiedade crônica difusa e flutuante, que manisfesta-se por sintomas fóbicos, obsessivos-compulsivos, hiponcondríacos, sexualidade perversa, adição à drogas ou álcool, e algumas formas de obesidade. Assim como Freud através da tentativa de compreender as manifestações da histeria desenvolveu o método psicanalítico e uma teoria que desse conta de explicar o que ocorria, hoje em dia, na tentativa de compreender e tratar os pacientes narcísicos e borderlines, os analistas contemporâneos tiveram de desenvolver novos conceitos e novas abordagens práticas para poder tratá-los. Freud considerava estes pacientes inadequados à sua técnica, que hoje poderíamos chamar de “clássica”. Mas com as novas teorias psicanáliticas, que nasceram do desenvolvimento dos conceitos geniais de Freud, hoje em dia estes pacientes se beneficiam de tratamento psicanalítico também, com as modificações que forem necessárias. A importância para nós no tratamento destes transtornos alimentares, é que à medida que crescem as dificuldades alimentares de uma pessoa, mais próxima está ela destes espectros mais narcísicos, principalmente se considerarmos a bulimia, anorexia e graves obesidades, as quais não são possíveis de ser tratadas sem levar em conta a questão de representação de si-mesmo ou self e portanto das patologias narcísicas de personalidade.

Como tem sido salientado por diversos autores, nossa sociedade caracteriza-se principalmente pelo  narcisismo. Alongar-me sobre o que é narcisismo ou dar explicações detalhadas sobre as causas do predomínio dos transtornos narcísicos em nossa sociedade atual, escapa e transcende os objetivos deste artigo. Mas para situarmos a questão, é necessário pontuar que narcisismo originalmente foi entendido por Freud como a volta ou o retorno da libido sobre o próprio ego, em lugar de dirigir-se ao mundo externo. Não quer dizer que o indivíduo ame muito à si mesmo, pelo contrário, são pessoas que não conseguem amar nem outros, nem à si mesmos, o que lhes traz um sentimento de vazio existencial. Elas não estabelecem relações verdadeiras com as pessoas, pois estes “outros” são sempre investidos de libido narcísica. Entenda-se então que estes outros são vivenciados como parte integrante do self da pessoa, tanto quanto uma parte ou função de seu próprio corpo. Os problemas surgem exatamente quando este outro escapa ao controle e de alguma forma se faz presente como diferente do indivíduo narcísico.

Na época de Freud predominavam os aspectos histéricos da sociedade, e como dissemos anteriormente, na tentativa de compreender os fenômenos histéricos, acabou por encontrar um método de tratamento que se revelou capaz de não só tratar estes pacientes, mas também de fornecer subsídios para uma teoria psicopatologica, do desenvolvimento, enfim uma psicologia que explicasse o funcionamento da  mente.

Nos tempos atuais, com o deslocamento na direção das patologias narcísicas, o que é reflexo da desestruturação do self/si-mesmo em nossa sociedade atual, com a precária formação de um self organizado e coeso em grau suficiente para ser autônomo. Há atualmente uma ausência de objetivos de vida, de direcionamento para idéias ou ideais, sejam estéticos, culturais ou científicos. A nossa sociedade tem elegido a riqueza financeira e a beleza física como o maior bem, e no afã de consegui-los homens e mulheres trabalham duramente em condições adversas em vários níveis, desde higiene e salubridade precária,  qualidade de vida pessoal e familiar insatisfatória, colocando a saúde  mental e a felicidade em risco. A busca da beleza física como objetivo maior tem impelido as pessoas em direção ao culto do corpo de uma forma narcísica, isto é, não se busca mais o esporte ou a dieta por sua qualidade de propiciar saúde ou nutrição, mas para satisfações narcísicas- e por isto podemos entender a necessidade de manter a valorização e integração de um sentimento de si-mesmo que está em desagregação, e tenta-se juntar e colar com preocupações corporais.  Cuidados com o corpo nos lembra os cuidados que a mãe faz ao seu bebê, e assim sendo podemos pensar que esta preocupação corporal é uma metáfora de cuidados maternos, uma maternagem substituta que a pessoa procura encontrar, e na verdade encontra- seja com cirurgias plásticas, massagens, promiscuidade sexual e academias. Devido a esta necessidade materna intensa, e pelos vários profissionais necessários ao tratamento, hoje em dia é preconizado por todos os autores que pacientes com transtornos alimentares sejam tratados em equipe multidisciplinar (o mesmo vale para usuários de drogas).

A busca incessante de algo que possa dar satisfação narcísica é frenética e ininterrupta, exigindo sempre novos endereços, sejam geográficos ou profissionais, através de mudanças contínuas, seja de relacionamentos novos que possam suprir a eterna insatisfação com o que se tem,  ou mesmo fazendo tratamentos da moda ou usando roupas de marca famosa. E não é apenas uma questão de prazer, é uma questão de sentimento de identidade pessoal, é uma questão de sobrevivência, como diria Freud, está além do princípio do prazer, a saber, nas questões de vida/morte. Nossa sociedade é uma sociedade que exige velocidade na satisfação, o prazer tem de ser imediato, rápido. Assim como vemos nas lojas os produtos pré-fabricados ou prontos para uso,  objetos para uso descartáveis, desta mesma forma se pensa nas relações humanas e no prazer. Tudo isto colocado no mesmo nível, pois já não há diferenciação entre o que importa e o que é secundário, a partir do momento em que o superego está desestruturado. Mata-se e morre-se pelo banal e pelo perverso.

Revistas femininas trazem receitas e fórmulas para emagrecer, ensinam como alcançar o orgasmo, como satisfazer o parceiro ou como fazer um prato diferente, ou até conseguir aumento no emprego. Nas revistas masculinas exibe-se carros, mulheres,  os grandes objetos do prazer masculino, com fórmulas para se alcançar o sucesso, bem como orientações como se vestir, comportar-se, e até mesmo como se divertir. Temos então a pré-fabricação das expectativas do comportamento pessoal, de homens e mulheres, definindo inclusive para cada sexo quais são as atribuições e preocupações que cada um deve ter. Isto se extende a todas as áreas, incluindo trabalho, o corpo,  a vida que se tem, levando as pessoas à busca de solucões mágicas, sejam cirúrgicas, de remédios novos propiciados pela industria farmacêutica, de novos tratamentos, de novas seitas, de produtos de marca; enfim é a sociedade de consumo tentando suprir as demandas de prazer das pessoas, através de DVD, TV e carro novos... Mas este prazer dura pouco, é descartável, consumido e então sofregamente, toca a descobrir novas alternativas: spas, religiões, tratamentos estéticos, viagens de lazer ou até mesmo esoterismo, tipo caminho de Santiago.

Esta busca de um prazer contínuo e fácil, combinada com a incapacidade de ter objetivos a longo prazo e esforçar-se para alcançá-los, aliada à descrença nas pessoas, instituições e nas próprias capacidades, tem levado as pessoas à uma alienação completa do que seria o objetivo a ser alcançado em seu desenvolvimento psicológico, pessoal, sexual, profissional, na vida enfim, ficando paradas em fases  precoces do desenvolvimento emocional,  aqui  apresentadas como distúrbios narcísicos e borderline da personalidade.

Esta busca do prazer permanente baseia-se na crença onipotente de que o homem tecnológico tudo pode, mas no fundo revela a incapacidade de viver com a castração, com a falta, com a limitação inerente à condição humana,  representada pelo mito edípico.  Já os distúrbios histéricos pertencem à um espectro de patologia de um self já estruturado, onde já existe um objeto externo, onde já existe triangulação edípica; já nos narcísicos a relação com o outro praticamente não existe, pois o outro é experimentado como uma parte de si mesmo, o outro é substituído por vínculos narcísicos como descritos brevemente acima, isto é, o outro é ao fim e ao cabo, uma parte do self narcisico.  Isto é, não há outro, não há relação afetiva com outro eu, as relações são com “coisas” e que levam portanto a um empobrecimento do eu, que como sabemos obtem parte de sua força na satisfação e reconhecimento com as pessoas.

O indivíduo não tem mais independência  de idéias e ideais, e os substitui pelos incutidos pela  sociedade que pertence, transmitidos através da propaganda e dos meios de comunicação de massa; ou seja, um corpo magro ao extremo, ou inflado por silicone ou anabolizantes. Magreza esta que visa negar as qualidades corpóreas reais, o que é também a negação do desejo, da pulsão. As funções femininas reais escasseiam e são recolocadas no corpo através de tratamentos estéticos ou de implantes de silicone. É a robotização do corpo,  coisificação que visa criar uma estrutura hiperrealista que simule aquilo que foi extirpado- a feminilidade. O  mesmo é feito com o corpo masculino através de exercícios, tratamentos químicos e próteses penianas. Procura-se negar a diferença de gerações,  procurando apagar rugas e as marcas do tempo que passa, e do gênero, onde se borra as diferenças sexuais. É negar Édipo que mais uma vez se tenta na sociedade globalizada, onde tudo é pasteurizado pelos meios de comunicação de massa. Assim como a pasteurização visa matar bactérias do leite para evitar sua fermentação, a cultura moderna tenta matar no nascedouro as diferenças socioculturais, através do bombardeio da propaganda, transformando o mundo em todo lugar se pensa e veste-se do mesmo jeito, come-se a mesma comida, o estilo de vida é o mesmo. Parece que em parte isto é alcançado pelas quebras de vínculos afetivos entre as pessoas e internamente, pela precária estruturação do aparelho psíquico. Nossa sociedade parece dificultar o crescimento de individualidades, e facilitar o acesso à tecnologia moderna e ao consumo.
Resta e então a alienação de si mesmo, a fuga através das drogas, a exclusão.  O excluído do mundo moderno inclui além do pobre, o aidético, o homossexual, o drogado. Mas cresce a classe dos excluídos da própria subjetividade, e são os que vivem no consumo superficial, sem família, educação ou valores éticos e assim não conseguem formar suas individualidades.

E termino esta exposição dizendo que nossa cultura contemporânea, apesar do inegável progresso científico e tecnológico, sofre vários problemas na área dos valores humanos, tem algo doente  nesta sociedade- o que não quer dizer que não o tenha havido em outras- e que isto tem gerado novas patologias, que eram raras ou até mesmo desconhecidas em outras sociedades e culturas. E destas fazem parte, com certeza os transtornos alimentares, a dependencia de drogas, a AIDS, que são doenças de nosso tempo e de nossa civilização, e a cura não é somente um novo remédio fabricado por uma industria  farmacêutica do primeiro mundo, mas uma conscientização do que nossa sociedade é- e que tipos de indivíduos e pessoas ela tem de-formado.


Bibliografia
Freud, S: (1921)Análise de Grupo e Psicologia do Ego. Imago, vol 18,1980
______:  (1914) Sobre o Narcisismo, Uma Introdução. Imago, vol 14, 1980
______ : (1916) O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. Imago, Vol 16, 1980
Gabbard, G.: Psiquiatria Psicodinâmica na Prática Clínica. Artes Médicas,1992
Kohut, H. A Restauração do self. Imago. 1988
Laraia, RB Cultura, um comceito antropológico . Jorge Zahar, 1986
Melo, J. et. Al: Psicossomática Hoje, Artes Médicas, 1986


 Paulo André M. Borges

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