O ser
humano não é uma ilha, independente de tudo o que o cerca, e se fosse teríamos
de dizer que o oceano seria a sociedade, na qual o homem vive imerso como um
peixe no mar. Muitas são as culturas, raças e nações, e no entanto o homem é o
mesmo em sentimentos, pensamentos e desejos, é uma grande variação sobre estes
mesmos temas. Cada período da história, cada civilização e cultura tem sua
própria maneira de conceber o mundo, o papel do homem nele e quais são as
qualidades valorizadas, quais são os comportamentos virtuosos, e quais são os
valores de bem e mal, certo e errado, feio e bonito.
A diferença cultural pode
ser exemplificada pela história da dona de casa búlgara, cujo marido convida um
colega asiático para o jantar. Deixar de oferecer uma repetição é para ela uma
grande falta de cortesia, e ela o faz, e o japonês aceita, até que ela tem de
ir à cozinha preparar mais alimentos. Isto se repete até que o jovem japonês
desmaia e põe fim a este sofrimento.
Acontece que para um japonês recusar a oferta de seu anfitrião é uma grande
ofensa, um desrespeito que ele detesta, tanto que prefere desmaiar à recusar a
comida. Assim vemos que cada grupo social tem sua maneira de lidar com a
comida, as regras sociais e hábitos alimentares estão impregnados de traços de
sociabilidade, cortesia, aceitação e afeto.
Isto nos
conduz diretamente até à primeira relação do ser humano, com sua primeira fonte
de alimento, que é o seio. Seio este que é um órgão nutridor para o bebê, um
símbolo de feminilidade para a mulher, e atração estética para os homens. Um
órgão que tem significados distintos a partir da inscrição que ele toma na
relação com o outro ou consigo mesmo. E é a partir da diferenciação do corpo da
mãe evolui o ser humano, inicialmente gestado dentro do abdome da mulher. A
diferenciação do self inicia-se nesta relação com o corpo da mãe, está inserida
nestes primeiros contatos físicos mãe/bebê, e a maneira como o self vai ser
formado tem a ver com esta relação. A relação afetiva mãe/ bebê necessária à
sobrevivência está portanto apoiada em uma relação corporal e fluxo libidinal e
por eles será configurada. Freud (1916) : “ O componente erótico que é
satisfeito simultaneamente durante a sucção nutricional, torna-se independente
com o ato da sucção sensual: abandona o objeto externo e o substitui por uma
área do corpo do próprio bebê.” Ou seja, o alimento torna-se para o
anoréxico/bulímico não apenas um elemento que dá prazer auto-erótico, mas é
usado com funções “reguladoras” da
relação com a mãe, tentativa de prescindir ou manipulá-la, passando a usar o
corpo e o alimento neste sentido.
O alimento que por um lado pertence ao mundo
exterior, por outro tem características muito pessoais, pois vai ser
incorporado e constituirá o nosso corpo literalmente falando. É como se o leite
fosse o primeiro objeto transacional, e este é um objeto líquido intermediário
entre corpo da mãe, com o cheiro da mãe, e o corpo do bebê. A fantasia de estar
comendo a mãe não é muito distante do que acontece na realidade... O alimento
assim adquire um significado muito pessoal e carregado de características
próprias da relação mãe/bebê e, no futuro, como esta pessoa vai relacionar-se
consigo mesma e com os outros. E nestas relações desempenha o papel fundamental
a alimentação, e à ela são anexados os cuidados corporais com o bebê,
especialmente com a higiene e o contato com a pele da criança. São estas
primeiras relações corporais - e notemos que são relacionadas com higiene e
alimentação, com prazer e desconforto - que são a base das identificações que
vão propiciar a formação de nosso aparelho psíquico.
Até aqui falamos de conceitos ligados à
teoria da libido para entender a carga de afeto que está ligada ao alimento,
porém não podemos nos esquecer das características oriundas da libido narcísica
quando lidamos com os quadros dos transtornos alimentares. Não se lida apenas
com significados afetivos dos alimentos em quadros de anorexia, bulimia ou
obesidade. Lidamos muito mais com a imagem que estas pessoas tem de si mesmas,
tanto de imagem física quanto mental. O conceito de beleza e do valor pessoal é
algo que é variável de acordo com a época, raça e cultura. O ser humano aspira
à perfeição e isto inclui uma perfeição física e psicológica. Daí a necessidade
de adequar um modelo de corpo que corresponda a estas expectativas pessoais,
pois o corpo é o agente fundamental da formação da consciência individual.
No
neolítico as estatuas femininas em geral retratam mulheres obesas, geralmente
associadas à deusas da fertilidade, com grandes seios e quadris. Os nus de
Renoir nos parecem gordos para os padrões atuais de beleza ocidental. Através
da imagem estética busca-se uma identidade própria, e uma aceitação grupal,
pois o conceito de beleza está ligado a um ideal de beleza de um grupo social.
A imagem de si mesmo, a busca da harmonização da imagem si como é visto pelos
outros, como sente o próprio corpo e como é a imagem objetiva de si, leva a
pessoa à uma busca de integração pessoal, através da satisfação narcísica.
Dependendo do grau de mentalização e introspeção, a pessoa poderá buscar isto
dentro de si mesma (ideal do ego), ou no mundo externo (apoio social).
A
patologia símbolo de nossa época- os transtornos narcísicos- são exatamente uma
tentativa de equacionar os problemas da formação do self e da identidade.
Alguns recorrem então à cirurgia bariátrica ou à dieta; e outros à Psicanálise
para encontrar uma integração e equilíbrio de si mesmo. Esta busca reflete o
conflito entre corpo físico e mente, externo e interno, emocional versus
racional, libido objetal e libido narcísica. Não devemos nos esquecer no
entanto, que é a mente que forma uma imagem do corpo, e não que este corpo tem
uma fisicidade objetiva concreta independente de qualquer representação mental.
A
anorexia e bulimia, são exemplos que refletem a nossa cultura e seus valores,
sendo praticamente inexistente em culturas que não valorizam a magreza. Em
certas culturas ter uma mulher gorda é sinal de riqueza. A anoréxica geralmente
é uma boa menina, que na adolescência mostra seus aspectos inafetivos e falta
de autonomia, bem como não sentir seu corpo como seu, pois mantém uma fusão
emocional com suas mães. A doença então é uma forma de autocura, e o controle
de seu peso corporal é uma tentativa de lidar
com as dificuldades emocionais, como a dependência, a dificuldade de
separação e passividade nas relações interpessoais através do controle do peso
corporal. Poucas gramas fazem uma grande diferença, quando se trata da
necessidade de adquirir ou não um sentimento de si mesma, e de sentir-se
integra como pessoa. Mais uma vez o corpo é veiculo de regulagem de carências
emocionais.
O comportamento do anorético reflete a
necessidade de sentir-se uma pessoa especial e única, ganhando assim a
possibilidade de ser amada, admirada pelas suas qualidades. Desenvolvem um
falso self para agradar à mãe, ser uma criança perfeita, comportada, para
assegurar-se de não perder o amor da mãe. A raiva e a agressividade reprimidas
no entanto fazem com que o ressentimento se acumule, diminuindo a possibilidade de
receber coisas boas das pessoas, que são rejeitadas. O tratamento é complexo
exatamente pela necessidade de mudanças nas relações familiares que
participaram do surgimento desta forma de constituir-se enquanto pessoa.
Estritamente falando, parece que o paciente é o sujeito de relações afetivas
mal resolvidas, especialmente da mãe. Assim sendo ele não consegue ser ele
mesmo, há um pacto não escrito que os transtornos alimentares são a solução que paciente e família encontraram de
lidar com as dificuldades sexuais e agressivas, de crescimento e de separação.
Os
episódios de bulimia são devidos ao deslocamento para a comida da raiva e da
agressão que é inconscientemente dirigida para os pais. O relacionamento com
eles é utilizado para receber uma punição e a comida é destruída
canibalisticamente. Estas pessoas não conseguem regular seus relacionamento
afetivos, assim como não conseguem regular a ingestão de comida, para a qual
são deslocados seus problemas pessoais. Neste contexto, o vomito equivale a uma
rejeição de internalização de algo bom, ou então ao medo de ser invadida por
algo ruim, que precisa ser expulso. Uma voracidade intensa, com o desejo de
engolir e tudo possuir, esta incorporação oral determina que estas coisas ou
objetos bons que são desejados sejam incorporados com muita agressividade, o
que os torna maus, ou então estragados pela própria violência da pessoa neles
colocada, inclusive pela forma raivosa com que foram incorporados. Este ataque
interno determina a necessidade de expulsá-lo pelo vomito ou pela não ingestão,
atacando também os vínculos com as pessoas fornecedoras de alimento- a mãe. Não
conseguir receber aumenta ainda mais a raiva e a inveja, e a penúria interna
torna a frustração ainda mais desesperada- o que leva a mais agressão.
A bulímica simbolicamente destrói as
pessoas (os vínculos afetivos) através da comida, e a anoréxica tenta manter o
controle sobre sua agressividade recusando-se a comer. A ingestão alimentar
simboliza um modo de relacionamento onde se expulsa, recusa ou ingere-se
desordenadamente os sentimentos; o desejo de estar fundido com o outro e as
dificuldades de separação ou expulsão de sentimentos negativos são
transformadas em desejo de ingerir ou recusar alimento(afeto, libido).
Assim a
comida tem uma função de lidar com a raiva, com a frustração, e obter um prazer
às avessas, é um modo de se comunicar com a família e a sociedade, de ser
punida(bulimia) ou de punir(anorexia). A comida surge no lugar das preocupações
emocionais e dos sentimentos, especialmente afetivo-sexuais, narcísicos e agressivos, das dificuldades de separação
da mãe à qual encontra-se fusionada em diferentes graus, com prejuízo da imagem
de si mesma como pessoa.
A tarefa
dos profissionais de saúde é entender a complexidade envolvida nestes
comportamentos, que não podem ser reduzidos somente a um de seus ângulos, seja
nutricional, psicológico, social ou médico. Os transtornos alimentares são
complexos e de difícil tratamento, e soluções definitivas como a cirúrgica necessitam
de cuidadosa avaliação psicológica, pois a grande redução de peso resultante
pode alterar a imagem de si próprio, e ser sentida como um esvaziamento de si
mesmo(self) e podendo levar a vivências
até de nível psicótico, pela possível perda da identidade precariamente
obtida desta forma.
Tendo
proposto as questões culturais dos distúrbios alimentares, eu gostaria de situar o panorama social e cultural no
qual se localizam os transtornos alimentares. Nenhum homem vive independente do
seu mundo que o cerca, e em Psicanálise existe uma divisão sobre o papel do
meio ambiente como uma causa de problemas ou não. Existem aqueles como Karen
Horney, Winnicott e Kohut que atribuem um fator fundamental ao ambiente seja
ele cultural ou seja representado pela mãe; enquanto que outros atribuem um
papel muito menor, e dentre estas quero destacar a grande figura de Melanie
Klein. Já Freud, com toda a sua genialidade, era eqüitativo, atribuindo a ambos
os fatores igual importância, um complementando o outro, o que ele chamava de
série complementar.
No seu
livro “ Psicologia de grupo e analise do ego”, ressalta Freud que a inserção de
uma pessoa em um grupo social dá-se por uma identificação primeiro com o líder,
e depois pelos membros do grupo entre si. A palavra líder pode ser substituída
por qualquer figura que a pessoa admire ou que sirva de modelo de
identificação, e entre os adolescentes é comum que seja um artista ou cantor da
moda ( é bem verdade que são todos substitutos das figuras parentais). Esta
pessoa e o grupo assumem o papel de superego e ideal de ego do indivíduo no
grupo, como descrito por Freud, e assim
a pessoa é dirigida em seus ideais e controlada em seus desejos desta forma,
copiando comportamentos e formando hábitos. Um dos mais importantes é quanto
aos hábitos alimentares, que tem tudo a ver com afeto e sentimento,
especialmente com relação com a mãe. A relação com a comida é de uma tonalidade
afetiva determinada pela dupla pais/filhos inseridos na cultura familiar. O
cheiro e a apresentação dos alimentos, a reunião das pessoas à mesa, não são
apenas para nutrir o corpo físico, mas nutrem as relações amorosas nas famílias. A hora da refeição é
uma hora de trocas afetivas entre as pessoas, e com a vida moderna isto está
mudando, as pessoas não estão todas presentes, não comem juntas. A super-alimentação e obesidade podem ser investigadas como questões de pulsões orais e
dificuldade de controlar pulsões agressivas, mas do ponto de vista de
representação do self, trata-se da necessidade da criança estabelecer uma
relação com alguém que lhe forneça alimento, por mais vaga que seja a forma que
esta relação seja reconhecida. No
entanto, a criança necessita não apenas da comida, mas principalmente do
suporte afetivo para edificar o seu self, e isto só se torna possível na relação que se estabelece com quem a alimenta
de amor.
No famoso artigo de Freud de 1914, “ Sobre o
Narcisismo”, ele distingue duas principais partes do ego, primeiro as funções
do ego, e em segundo, as representações do ego. Quanto às funções do ego, nossa
sociedade tem dado um avanço tremendo, com muitos ganhos nos aspectos
cognitivos, motores, com desenvolvimento de habilidades técnicas que não cessam
de evoluir. Já no aspecto representacional do ego, não tem havido o mesmo progresso
e desenvolvimento do self. Por representação do self, entenda-se a imagem coesa
e integrada que uma pessoas desenvolve de si mesma no decorrer do tempo, é um
sentimento de ser ela mesma, de identidade, e também como gênero, isto é, homem
ou mulher. Deve-se incluir neste sentimento de si-mesmo a capacidade de manter
relações afetivas com outros significativos- isto é, pais, irmãos, parentes,
namorado/a, marido/mulher, amigos e colegas. Nota-se nestes pacientes uma
insatisfação difusa e mal definida, uma sensação de vazio crônico, uma vaga
depressão atípica, que Kernberg denominou de síndrome de difusão de identidade,
que é uma das maiores características dos distúrbios narcísicos de personalidade. A difusão de identidade
manifesta-se por percepções contraditórias de si mesmo, e uma visão empobrecida dos outros, que
ocasiona relações caóticas e superficiais com as pessoas.
Estes distúbios,
juntamente com os borderlines, são para o analista contemporâneo aquilo que para
Freud era a histeria- a grande maioria dos casos e um enigma a ser decifrado,
um desafio. Ao mesmo tempo, tem sido umas das grandes fontes do avanço teórico
e clínico na psicanálise. Borderline é uma classificação que refere-se a
pacientes com uma ansiedade crônica difusa e flutuante, que manisfesta-se por
sintomas fóbicos, obsessivos-compulsivos, hiponcondríacos, sexualidade
perversa, adição à drogas ou álcool, e algumas formas de obesidade. Assim como
Freud através da tentativa de compreender as manifestações da histeria
desenvolveu o método psicanalítico e uma teoria que desse conta de explicar o
que ocorria, hoje em dia, na tentativa de compreender e tratar os pacientes
narcísicos e borderlines, os analistas contemporâneos tiveram de desenvolver
novos conceitos e novas abordagens práticas para poder tratá-los. Freud
considerava estes pacientes inadequados à sua técnica, que hoje poderíamos
chamar de “clássica”. Mas com as novas teorias psicanáliticas, que nasceram do
desenvolvimento dos conceitos geniais de Freud, hoje em dia estes pacientes se
beneficiam de tratamento psicanalítico também, com as modificações que forem
necessárias. A importância para nós no tratamento destes transtornos
alimentares, é que à medida que crescem as dificuldades alimentares de uma
pessoa, mais próxima está ela destes espectros mais narcísicos, principalmente
se considerarmos a bulimia, anorexia e graves obesidades, as quais não são
possíveis de ser tratadas sem levar em conta a questão de representação de
si-mesmo ou self e portanto das patologias narcísicas de personalidade.
Como tem sido salientado por diversos autores,
nossa sociedade caracteriza-se principalmente pelo narcisismo. Alongar-me sobre o que é
narcisismo ou dar explicações detalhadas sobre as causas do predomínio dos
transtornos narcísicos em nossa sociedade atual, escapa e transcende os
objetivos deste artigo. Mas para situarmos a questão, é necessário pontuar que
narcisismo originalmente foi entendido por Freud como a volta ou o retorno da
libido sobre o próprio ego, em lugar de dirigir-se ao mundo externo. Não quer
dizer que o indivíduo ame muito à si mesmo, pelo contrário, são pessoas que não
conseguem amar nem outros, nem à si mesmos, o que lhes traz um sentimento de
vazio existencial. Elas não estabelecem relações verdadeiras com as pessoas, pois
estes “outros” são sempre investidos de libido narcísica. Entenda-se então que
estes outros são vivenciados como parte integrante do self da pessoa, tanto
quanto uma parte ou função de seu próprio corpo. Os problemas surgem exatamente
quando este outro escapa ao controle e de alguma forma se faz presente como
diferente do indivíduo narcísico.
Na época de Freud predominavam os aspectos
histéricos da sociedade, e como dissemos anteriormente, na tentativa de
compreender os fenômenos histéricos, acabou por encontrar um método de
tratamento que se revelou capaz de não só tratar estes pacientes, mas também de
fornecer subsídios para uma teoria psicopatologica, do desenvolvimento, enfim
uma psicologia que explicasse o funcionamento da mente.
Nos
tempos atuais, com o deslocamento na direção das patologias narcísicas, o que é
reflexo da desestruturação do self/si-mesmo em nossa sociedade atual, com a
precária formação de um self organizado e coeso em grau suficiente para ser
autônomo. Há atualmente uma ausência de objetivos de vida, de direcionamento
para idéias ou ideais, sejam estéticos, culturais ou científicos. A nossa
sociedade tem elegido a riqueza financeira e a beleza física como o maior bem,
e no afã de consegui-los homens e mulheres trabalham duramente em condições
adversas em vários níveis, desde higiene e salubridade precária, qualidade de vida pessoal e familiar
insatisfatória, colocando a saúde mental
e a felicidade em risco. A busca da beleza física como objetivo maior tem
impelido as pessoas em direção ao culto do corpo de uma forma narcísica, isto
é, não se busca mais o esporte ou a dieta por sua qualidade de propiciar saúde
ou nutrição, mas para satisfações narcísicas- e por isto podemos entender a
necessidade de manter a valorização e integração de um sentimento de si-mesmo
que está em desagregação, e tenta-se juntar e colar com preocupações
corporais. Cuidados com o corpo nos
lembra os cuidados que a mãe faz ao seu bebê, e assim sendo podemos pensar que esta
preocupação corporal é uma metáfora de cuidados maternos, uma maternagem
substituta que a pessoa procura encontrar, e na verdade encontra- seja com
cirurgias plásticas, massagens, promiscuidade sexual e academias. Devido a esta
necessidade materna intensa, e pelos vários profissionais necessários ao
tratamento, hoje em dia é preconizado por todos os autores que pacientes com
transtornos alimentares sejam tratados em equipe multidisciplinar (o mesmo
vale para usuários de drogas).
A busca incessante de algo que possa dar
satisfação narcísica é frenética e ininterrupta, exigindo sempre novos
endereços, sejam geográficos ou profissionais, através de mudanças contínuas,
seja de relacionamentos novos que possam suprir a eterna insatisfação com o que
se tem, ou mesmo fazendo tratamentos da
moda ou usando roupas de marca famosa. E não é apenas uma questão de prazer, é
uma questão de sentimento de identidade pessoal, é uma questão de
sobrevivência, como diria Freud, está além do princípio do prazer, a saber, nas
questões de vida/morte. Nossa sociedade é uma sociedade que exige velocidade na
satisfação, o prazer tem de ser imediato, rápido. Assim como vemos nas lojas os
produtos pré-fabricados ou prontos para uso,
objetos para uso descartáveis, desta mesma forma se pensa nas relações
humanas e no prazer. Tudo isto colocado no mesmo nível, pois já não há
diferenciação entre o que importa e o que é secundário, a partir do momento em
que o superego está desestruturado. Mata-se e morre-se pelo banal e pelo
perverso.
Revistas femininas trazem receitas e fórmulas
para emagrecer, ensinam como alcançar o orgasmo, como satisfazer o parceiro ou
como fazer um prato diferente, ou até conseguir aumento no emprego. Nas
revistas masculinas exibe-se carros, mulheres,
os grandes objetos do prazer masculino, com fórmulas para se alcançar o
sucesso, bem como orientações como se vestir, comportar-se, e até mesmo como se
divertir. Temos então a pré-fabricação das expectativas do comportamento
pessoal, de homens e mulheres, definindo inclusive para cada sexo quais são as
atribuições e preocupações que cada um deve ter. Isto se extende a todas as
áreas, incluindo trabalho, o corpo, a
vida que se tem, levando as pessoas à busca de solucões mágicas, sejam
cirúrgicas, de remédios novos propiciados pela industria farmacêutica, de novos
tratamentos, de novas seitas, de produtos de marca; enfim é a sociedade de
consumo tentando suprir as demandas de prazer das pessoas, através de DVD, TV e
carro novos... Mas este prazer dura pouco, é descartável, consumido e então
sofregamente, toca a descobrir novas alternativas: spas, religiões, tratamentos
estéticos, viagens de lazer ou até mesmo esoterismo, tipo caminho de Santiago.
Esta
busca de um prazer contínuo e fácil, combinada com a incapacidade de ter
objetivos a longo prazo e esforçar-se para alcançá-los, aliada à descrença nas
pessoas, instituições e nas próprias capacidades, tem levado as pessoas à uma
alienação completa do que seria o objetivo a ser alcançado em seu
desenvolvimento psicológico, pessoal, sexual, profissional, na vida enfim,
ficando paradas em fases precoces do
desenvolvimento emocional, aqui apresentadas como distúrbios narcísicos e
borderline da personalidade.
Esta
busca do prazer permanente baseia-se na crença onipotente de que o homem
tecnológico tudo pode, mas no fundo revela a incapacidade de viver com a
castração, com a falta, com a limitação inerente à condição humana, representada pelo mito edípico. Já os distúrbios histéricos pertencem à um
espectro de patologia de um self já estruturado, onde já existe um objeto
externo, onde já existe triangulação edípica; já nos narcísicos a relação com o
outro praticamente não existe, pois o outro é experimentado como uma parte de
si mesmo, o outro é substituído por vínculos narcísicos como descritos
brevemente acima, isto é, o outro é ao fim e ao cabo, uma parte do self
narcisico. Isto é, não há outro, não há
relação afetiva com outro eu, as relações são com “coisas” e que levam portanto
a um empobrecimento do eu, que como sabemos obtem parte de sua força na
satisfação e reconhecimento com as pessoas.
O
indivíduo não tem mais independência de
idéias e ideais, e os substitui pelos incutidos pela sociedade que pertence, transmitidos através
da propaganda e dos meios de comunicação de massa; ou seja, um corpo magro ao extremo,
ou inflado por silicone ou anabolizantes. Magreza esta que visa negar as
qualidades corpóreas reais, o que é também a negação do desejo, da pulsão. As
funções femininas reais escasseiam e são recolocadas no corpo através de
tratamentos estéticos ou de implantes de silicone. É a robotização do
corpo, coisificação que visa criar uma
estrutura hiperrealista que simule aquilo que foi extirpado- a feminilidade.
O mesmo é feito com o corpo masculino
através de exercícios, tratamentos químicos e próteses penianas. Procura-se
negar a diferença de gerações,
procurando apagar rugas e as marcas do tempo que passa, e do gênero,
onde se borra as diferenças sexuais. É negar Édipo que mais uma vez se tenta na
sociedade globalizada, onde tudo é pasteurizado pelos meios de comunicação de
massa. Assim como a pasteurização visa matar bactérias do leite para evitar sua
fermentação, a cultura moderna tenta matar no nascedouro as diferenças
socioculturais, através do bombardeio da propaganda, transformando o mundo em todo
lugar se pensa e veste-se do mesmo jeito, come-se a mesma comida, o estilo de
vida é o mesmo. Parece que em parte isto é alcançado pelas quebras de vínculos
afetivos entre as pessoas e internamente, pela precária estruturação do
aparelho psíquico. Nossa sociedade parece dificultar o crescimento de
individualidades, e facilitar o acesso à tecnologia moderna e ao consumo.
Resta e
então a alienação de si mesmo, a fuga através das drogas, a exclusão. O excluído do mundo moderno inclui além do
pobre, o aidético, o homossexual, o drogado. Mas cresce a classe dos excluídos
da própria subjetividade, e são os que vivem no consumo superficial, sem
família, educação ou valores éticos e assim não conseguem formar suas
individualidades.
E
termino esta exposição dizendo que nossa cultura contemporânea, apesar do
inegável progresso científico e tecnológico, sofre vários problemas na área dos
valores humanos, tem algo doente nesta
sociedade- o que não quer dizer que não o tenha havido em outras- e que isto
tem gerado novas patologias, que eram raras ou até mesmo desconhecidas em
outras sociedades e culturas. E destas fazem parte, com certeza os transtornos
alimentares, a dependencia de drogas, a AIDS, que são doenças de nosso tempo e
de nossa civilização, e a cura não é somente um novo remédio fabricado por uma
industria farmacêutica do primeiro
mundo, mas uma conscientização do que nossa sociedade é- e que tipos de
indivíduos e pessoas ela tem de-formado.
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Paulo André M. Borges